alguns retratos de solidão

   Hoje em dia toda a gente tem um carro, muitos têm mais do que um carro, alguns ostentam frotas inteiras, por isso me custa tanto ver, aqueles senhores, já velhotes, agarrados às suas bicicletas a pedalarem já meios entorpecidos do reumatismo e da velhice. Comove-me vê-los , tantas vezes, naquelas madrugadas frias, por vezes mal agasalhados e penso na tristeza que é terem chegado a esta fase das suas vidas e não terem conseguido poupanças suficientes para comprarem, nem que fosse um daqueles carrinhos em que não é sequer preciso carta de condução!

   Tanto como me corta a alma ver um senhor, com os seus 70 anos, no mínimo, por quem passo vezes sem conta, no caminho para a minha casa, a caminhar na berma da estrada, invariavelmente com uma especie de  cajado a segurar um saco, pousado sobre um ombro, de cabeça inclinada num ângulo doloroso, de ossos já deformados e nitidamente com um passo cansado, incerto; nunca o vi parar para descansar, sempre que passo por ele, a imagem é a mesma: a mesma inclinação de cabeça, a mesma determinação no passo, algo trôpego mas resoluto!  Todavia vejo-o tantas vezes na sua rotina diária que me pergunto, o que fará este homem ainda andar de cá para lá e de lá para cá, uma distância já demasiada para o seu corpo dorido?! Quero dar-lhe boleia, mas inacreditavelmente sempre que me cruzo com ele, ele está sempre na berma contrária daquela estrada movimentada e de várias faixas e acabo por continuar. Digo a mim própria, da próxima vez é que vai ser... mas vejo-o sempre com o mesmo olhar fixo e tenaz, no seu passo que não abranda e... sinto algum receio! Receio de que não aceite! Mas da próxima vez é que vai ser!  

   Na rua da Sé, sentado na sua cadeira de rodas sem a qual não consegue sobreviver, com as duas pernas amputadas e uma caixinha para as moedas na sua mão direita, permanece um homem, de magreza extrema, rosto chupado, olhar triste, de meia idade mas poderá ser muito mais novo! Parece-me estrangeiro, provavelmente um emigrante de algum dos países do leste! Por vezes passa alguém que se detêm um pouco e troca algumas palavras com ele; pelo som parece-me russo ou ucraniano! O que faz este homem, assim, claramente diminuído no seu corpo e no seu espírito, num pais estranho, a viver de esmolas? O que o faz sair todos os dias, colocar-se sempre no mesmo local e assim passar o dia, à mercê da caridade alheia? 

Comentários

  1. No sítio onde eu morava anteriormente (Sintra, que é um paraíso) havia uma senhora, também já com uma provecta idade, que caminhava uma longa distância até à paragem do autocarro, logo de manhãzinha, para ir trabalhar a dias a casa de "uns senhores". Toda a gente que passava por ela lhe dava boleia, pelo que em geral ela acabava por não ir a pé até ao destino. Eu dou boleias, sempre que posso. Acho que é uma boa forma de dividir pelos menos favorecidos esse bem que temos a sorte de poder ter.

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