Regresso

   Em meados de Agosto já eu estou fartinha de férias, em Setembro ressuscito para a rotina da escola e isso salva-me da melancolia e da prostração doentia dos finais de férias em que não há mais que inventar o que fazer para ocupar os dias que demoram eternidades a passar; em Setembro vejo putos novamente, credo, como sinto falta de os ver; mais, quando regresso à escola até o maior corrécio me vem cumprimentar com a delicadeza do ser mais educado; é que eles estão também satisfeitos por me verem, é assim mesmo, podem passar o restante ano lectivo a engendrar formas de me massacrar que naquele instante, o contentamento é genuíno; e eu que refilo o ano todo que os gritos e os sons de dezenas de alunos a martelarem-me incessantemente a cabeça me matam de morte lenta e dolorosa dou por mim a desejar que esses sons me invadam a moleira novamente. Somos muito de rotinas mesmo aquelas que nos cansam, são as nossas rotinas; quando quebradas o meu corpo entra num modo de funcionamento ao qual tenho que me adaptar e por vezes leva tempo e antes que isso aconteça desorganiza-se e bate mal;instala-se o mal de férias e até que o organismo se organize novamente há ali uma fase meia estranha em que as férias não são desejadas; ou até são porque o corpo e o espírito pedem mas também temidas; depois tudo se compõe mas prestes, prestes e com a precisão de uma máquina o corpo diz-me, chega, chega de ferias, é demais tanta sorna, volta à rotina, dás-te bem com ela, precisas daqueles patifes a gritarem-te aos ouvidos " stora, que vamos fazer?" " stora, podemos jogar futebol?!" " stora, podemos-se equipar?!" a palavra " stora" dita até à exaustão, múltiplas vezes durante uma aula vezes 5 aulas vezes 5 dias da semana vezes o ano lectivo todo. É muita stora pronunciada  muitas perguntas sôfregas e em simultâneo, muita visão periférica para atender a bombardeamentos constantes, muitos pedidos e muitos resmungos e muitos protestos e muitas respostas, tortas, umas vezes inteligíveis  outras vezes grunhidas   onde pela entoação chegamos ao seu significado; o que não interessa mesmo nada neste principio de ano lectivo, não nos mete medo, a mim não me mete medo:  é um vicio, ensinar é um vicio, estes sacaninhas meias-lecas cansam-nos o corpo e o juízo mas viciam-nos o espírito  Como se uma esponja misericordiosa limpe todo o aborrecimento e problemas de ontem e fique somente o gosto por ensinar; só ensinar! 
   Outro dia fui a uma tourada a S. Mateus e vi, de enfiada, 6 alunos de uma turma de Oportunidades, a versão açoriana dos currículos alternativos continentais. Os miúdos das Oportunidades têm 15, 16 anos e para estudar rendem muito pouco, estão-se completamente nas tintas para as delicadezas da língua portuguesa e as complexidades das ciências e o passado da história que já lá vai; o que eles querem mesmo é ir pescar como já foram e vão os pais, serem agricultores para manobrarem tractores, elas cabeleireiras ou cuidarem de crianças; esses malfeitores de meia tigela, os dos mal afamados Bairros de S. Mateus e Terra-Chã fizeram-me uma festa enorme quando me viram; já se esqueceram das injurias proferidas e de como, alguns, me mandaram algumas vezes para o caralho! Não são de guardar mágoas nem afrontas, aqueles caralhos proferidos limparam qualquer réstia de ressentimento que a levarem com eles pela vida nunca nos possibilitaria encontrarmo-nos e ficarmos genuinamente felizes por nos vermos novamente! Perguntaram-me quando é que volto para a escola deles, disse-lhes que seria difícil regressar, perguntei pelos colegas ausentes, tudo de roda de mim de sorrisos abertos nos rostos e todos a falarem ao mesmo tempo; deram-me novidades e quiseram saber se gosto da nova escola. Uma verdadeira conversa, de perguntas e respostas, e risos a algum dito mais divertido sem pressas de nos irmos embora. Despedimo-nos com o prazer do reencontro inesperado, um até já entre pessoas que sabem, se irão sempre cumprimentar, eles com um " Então stora, tudo bem consigo?!" e eu " olha o meu ex aluno... há quanto tempo" e desse reconhecimento sair uma impressão genuína e calorosa.

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