20 de Dezembro de 1962

   
   Sou filha tardia de uns pais de luto por outro filho. Sou a segunda geração de filhos de uns pais a quem lhes foi tirado, de chofre, um filho muito amado. A minha irmã, a Rui, nasceu de uma necessidade dolorosa de renascimento, a Rui foi a "luzinha que se acendeu" depois de anos de depressão inconsolável de uma mãe chorosa e de um pai que guardou tudo lá dentro, nem por isso menos  sentido. Sou filha não pensada mas nem por isso menos acarinhada por uns pais sempre presentes, pais já quase velhos que, contra todas as perspectivas conseguiram, na medida do possível, acompanhar a irreverência de uma filha mais nova, dócil quando pequena, irreverente, quase insolente quando crescida.
   Hoje, dia 20 de Dezembro, faz 49 anos que o filho primogénito morreu. Hoje como ontem, como sempre, a data é sentida profundamente: a mãe já deixou de pensar nela há alguns anos, a mãe já deixou de pensar que vive e que se arrasta neste mundo, a mãe vegeta, não vive, a mãe é um invólucro de carne e ossos onde de si resta quase nada; eu penso por ela e sei que a Rui o faz também. A mãe já deixou de pensar nas outras filhas que ainda vivem, no marido que já morreu, confunde a filha mais nova com a irmã que morreu há mais de 50 anos, definha e consome-se no estupor de uma velhice que a transfigurou. Eu recordo a data como sei que a Rui o faz, assim fomos educadas, a reverenciar um irmão que nunca vimos, um ser perfeito de meninice intocável, que não cresceu para contestar, criticar. A quem, sem maldade, como forma de nos educar na correcção de comportamento, fomos comparadas quando nos afastávamos do cânones de rectidão, de obediência. A quem, desde os meus sete anos, quando regressamos de Moçambique, visitava no cemitério, no jazigo onde permanecia, que ajudava a cuidar, a alindar com flores frescas. Era um local que temia mas ao qual sentia uma atracção irresistível.Eu mais que a minha irmã gostava de ir com a minha mãe, era  fonte inesgotável de pensamentos estranhos, tétricos que não afastava de mim; passeava por entre as campas, procurava fotografias de gente nova, horrorizava-me quando descobria uma criança, certas fotografias ainda as guardo na memória. A minha mãe nunca procurou afastar-nos dessa realidade de morte, anos mais tarde lamentava-se por isso quando, em plena adolescência me tornei uma rapariga obcecada por pensamentos tortuosos, mórbidos e doentios; disse-o várias vezes. Mas tudo isso passou! A realidade da morte sempre presente,  os avós que mais tarde se foram, à vez, as tias irmãs do meu pai, queridas tias, a tia Hercília, solteirona bonita e gentil, com os olhos da Elisabeth Taylor, que viveu para cuidar dos sobrinhos, a minha prima Paula, companheira de tantas loucuras e brincadeiras enquanto novas, os irmãos da mãe, o meu pai, em morte dolorosa, resultado dos inúmeros desvarios com a bebida e os amigos e a mãe a passar por tudo isso, a aguentar cada embate, sempre de pé, mulher de fibra forte, dura por vezes, que se ofendia quando lhe dizíamos isso mesmo, que era durona, que era de cepa forte, ela que tantas vezes precisava de fraquejar, que era duro ser sempre forte, que outros o fossem por ela que  também ela se sentia fraca.  A minha mãe já se foi, aquela que conheci, a de resposta rápida e de língua afiada, a que não deixava nada por dizer mesmo que fosse incómodo e ferisse os outros, em que me revejo em tantas circunstâncias da minha vida, a de discurso amargo já para o fim, um corpo que persiste para além de um espírito que se quebrou.
   
  

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