São Tomé - dia 2


Estou sem internet, escrevo no papel à moda antiga e depois actualizo o blogue. Parece que aqui costuma dar um surto por toda a internet na cidade, um pouco à semelhança com o que acontece com a luz na Terceira. Bem, são ilhas, estão no atlântico, pode ser que se explique por aí.
O Fernando ficou em Angola, a distração saiu-lhe cara, só vem a 26 o que significa que este Natal ainda vai ser mais radical do que supunha. Hoje de manhã, ao pequeno almoço, a minha cozinheira, a Sónia, disse-me que caso “o meu marido” (ontem ainda fui dizendo que era ex mas aqui parece que esse reparo não colhe nenhuma credibilidade, já o Nuno torceu o nariz, pelo que vai assim, de marido, que é para facilitar a conversa) não viesse, eu passava o Natal com ela. Agora digam-me, quantas vezes pessoas que mal nos conhecem nos convidam para passarmos o Natal com elas? Só me perguntou se gostava de dançar. Nem se discute esse assunto. Dançar na noite de consoada com ritmos africanos é mais do que poderia imaginar. Sempre achei que aquela coisa da árvore de Natal e do peru e tal é demasiado stress, pressão, formalidade. Muito sobrevalorizado. Amanhã vou ter com ela e perguntar se o convite se mantém de pé!
Quanto a hoje e tirando a circunstância do meu jipe, aparentemente um rolls royce dos todo o terreno, ser um chaço todo empenado, foi um dia de descobertas e aproximações. Aproximei-me logo de manhãzinha quando perto do mercado fui trocar euros por dobras. Um mano e o amigo fazem disto vida, um saco de plástico repleto de dobras. A transação fez-se, o aperto de mão da praxe e ala para o mercado para me perder naquele mundo. Fruta, comprei fruta, mangas, maracujás, goiabas, bananas.
Gasóleo no jipe, cartão para o telemóvel, as indicações básicas para me desenvencilhar e pisga-te. As vantagens das ilhas pequenas é que é sempre à roda. A probabilidade de te perderes é minima. Não convém, teres um furo também não é aconselhável - o Nuno desculpou-se por ter chegado uma hora atrasado ao nosso encontro com o facto de ter tido de ir mudar um pneu, “é São Tomé leve-leve” disse a Sónia, “com muita calma”.
Fui para norte pelo lado este, passei pelas povoações de Santo Amaro, Conde e Guadalupe. Segui o conselho do Nuno sobre um sitio bom para comer, de beira de estrada e depois da Lagoa Azul, retrocedi e entre Guadalupe e Conde, virei à esquerda e segui uma recta enorme que me levou a Micoló onde tive o privilégio de comer numa tasca improvisada com mesas de madeira protegidas por uns toldos esconços, um peixe chamado concon acompanhado de fruta-pão. O peixe era vermelho com grandes ovas, aberto e grelhado na brasa. A fruta-pão do tamanho de melões quase esféricos é assada em forno de lenha e depois descascado e servido às talhadas. Tem uma textura compacta, de sabor quase neutro mas que no molho do peixe, com bastante piripiri se torna delicioso. As mulheres que me atenderam, irmãs, falaram comigo como têm falado todas as pessoas que vou encontrando: simpáticas, directas, francas. Trataram-me por “Amiga” e serviram-me a comida com o requinte possível em pratos imaculados, talheres limpos e comida deliciosa. Falando um bocadinho com uma delas, disse-me que tem 3 filhos, com 31 anos e que a irmã tem 4. Que gostava de viajar pela Europa mas que não pode e, portanto, vai sonhando. Diz isto com um sorriso de resignação, a pingar suor pelo calor do fogareiro. São bonitas, airosas, risonhas mas cansadas. Enquanto almoço, ouço o choro de um bebé, aquela dos 4 filhos traz para fora um bebé de meses e dá-lhe de mamar ali perto. As mesas vão-se enchendo de homens que almoçam o mesmo que eu, olham para mim não sem alguma curiosidade mas sem me perturbarem. Todos me cumprimentam educadamente. Ainda tive tempo de falar com umas crianças que enchiam baldes numa torneira pública, da época dos portugueses datada de 1972. Impossível não meter conversa. Para estes sou a “dona”. Eu iniciei mas após dar o primeiro passo, atrevidos começam na conversa comigo. Um, um rapazito de 11 anos diz que namora com a miúda mulata, um palmo maior que ele. Ela nega. Ele ri-se. Outro, mais velho de 16 anos, conta-me que não vai à escola, não tem mochila. Pergunta-me se lhe dou uma mochila, digo-lhe que não tenho, que lhe posso dar cadernos. Prometo voltar ali, eles andam sempre nas redondezas. Apercebo-me que os locais, as crianças, se habituaram a ver nos brancos, no turista, uma fonte de pedinchice instituída. A verdade é que eles têm muito pouco.
Já antes, na Lagoa Azul, um paraíso natural e local de peregrinação turística, meti conversa com o Amador Vaz, cabeleireiro de homens (“mas que se ajeita também com mulheres”)a fazer uns biscates como guia turístico. Queria saber que árvore era aquela debruçada sobre a praia, um embondeiro, respondeu. Aquela zona está cheia deles, embondeiros e zimbreiros. O Amador quer ir para Portugal mas diz que os vistos estão muito difíceis. É preciso que o empregador de destino lhe faça um termo de responsabilidade muito bem fundamentado. Vou-lhe puxando pela língua e ele diz-me que o governo, recém-eleito não quer trabalhar para o povo, dá o exemplo das estradas, num estado lastimável por toda a ilha com camiões a percorrê-las todos os dias vindos da zona industrial de Neves onde existe a fabrica de cerveja Rosema e outras. Diz que os chefões só tiram para fora para construírem as suas casas na Europa. Muitos desempregados. Que o governo deveria investir no turismo e ter mais atenção à gatunagem nos sítios turísticos, é uma imagem que ele não gosta de mostrar a quem vem de fora, é uma vergonha. Tem 5 filhos de 5 mulheres, diz que agora, mais velho, já acalmou. Não vê futuro em São Tomé, para ajudar os filhos tem de sair. Fiquei com o contacto dele.
A cidade de São Tomé, à luz do dia é uma sombra do que deveria ter sido há algumas décadas atrás. Sem nostalgias do passado. A marginal acompanha as duas baías calmas que terminam na cidade. É a marginal ex colonial tipica de avenidas amplas e árvores frondosas. O mar que bate no muro é manso, sem ondas e repleto de lixo. Os passeios esburacados, sujidade por todo o lado. Motas, muitas motas, centenas de motas, é a mota-táxi que não pára, esta gente não pára, há bulício em qualquer altura do dia, a noite parece o dia dada a confusão. Sons de musica por todo o lado. Não há motas de cilindrada abaixo de 125cm3, bicicletas são raras. O Sãotomense é um taxista por vocação e necessidade. Todos usam as buzinas com alguma prodigalidade. São cautelosos sem desacelerarem. Conduzir o jipe nas estradas principais da cidades, repletas de gente nos passeios e várias filas desordenadas de veículos é um exercício de paciência e permanente bom humor, não vais lá zangado. Ainda não assisti a nenhum toque, surpreendentemente todos passam ainda que, sempre fora de mão. Os máximos são utilizados como médios, os piscas são substituídos pelas buzinadelas. Se és buzinado significa que vais ser ultrapassado, se fazes asneira és buzinado e no entanto, não te tratam com desrespeito. De certa forma, e de uma forma pouco ortodoxa, os Sãotomenses convivem civicamente na estrada. 
   Assisti à chegada de alguns barcos de pesca. A língua de praia mais próxima da cidade estava cheia de homens a descarregarem os barcos e mulheres a arranjarem o peixe, espadarte para nós, peixe andala para os Sãotomenses.
   No regresso ao carro passei para o outro lado da estrada e dou com mais uma cadela, esta mais gordinha, prenha talvez, a assaltar o caixote do lixo. Vendo-me salta do caixote e ouço através de mim uma voz jovem a censurar-me com um sorriso: " não faz isso, está a afugentar o animal do seu alimento!". Eu rio-me e digo-lhe que ela vai voltar e ele, como todos são, educado apresenta-se imediatamente dizendo "eu sou o Ronaldo" e eu sem inspiração " mas não o Cristiano" e ele rindo-se de quem está fartíssimo de ouvir a mesma responde " não, eu é que dei o Cristiano para ele!". Despedimo-nos a rir. 
   Andar pelas estradas nas aldeias obriga a entender este mundo com um olhar diferente. Esquecer a minha educação ocidental e embrenhar-me na vida “desarrumada” deste povo. Quem sofre de OCD irá padecer mais um pedacinho. As casas erguidas em estacas ao longo dos caminhos, os anexos e os arremendos das casas, a desordenamento dos povoados, quase sempre erguidos à beira da estrada com botecos, salões de beleza, barbearias, conserto de pneus, muitos em contentores pintados de cores garridas, povoados inteiros que se alongam sempre na estrada, tornando difícil a passagem de gente e veículos; as mulheres que lavam a roupa enquanto crianças nuas brincam nos riachos que vamos vendo ao longo da estrada, os estendais de roupa no capim que aflora os caminhos. É um impacto grande por mais avisada ou elástica que uma pessoa seja. Quebrado o primeiro choque, o que sobra é deslumbramento.




Almoço



As minhas cozinheiras em Micolô

Marginal



Prime minister house


Esta está gordinha - a fazer pela vida











Lagoa azul - a norte


embondeiro

lá fui ver o azul sempre a pensar em cobras






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