S. Tomé - dias 3 e 4

   Ontem conheci o Awoul de 20 anos, hoje conheci a Florência de 70. 
  O Awoul tem este nome estranho porque há o hábito aqui de juntar os nomes das pessoas mais chegadas, ou o dos pais, ou dos padrinhos ou no caso, o de um tio e do pai. No facebook tem um nome mais sonoro, é o Esparguete d'Açucar. Conheci o Awoul quando embiquei para a esquerda porque o trânsito no centro da cidade não me deixou virar à direita. Assim, fui para o interior, passei alguns vilarejos, todos alinhados ao longo da estrada até chegar a Trindade (antes disso existe o cemitério da Trindade que eu irei visitar nem que seja de fora, é muito interessante, muito velho, quase um jardim) onde tentei por gasóleo mas não havia. Dei a volta e deparei-me com um jogo de futebol. Parei mesmo por trás da baliza e quando fui a ver tinha metade do plantel a olhar para mim. Porque os rapazes e os homens sãotomenses não são acanhados chamaram-me logo e eu parei o carro. Veio o Awoul muito curioso e eu apresentei-me, com o Awoul aparece o Dani. Fiquei a saber que o Awoul é o treinador da equipa Capela Futebol Clube e que estavam ali no último jogo do campeonato distrital de futebol de 5. O Awoul quer dar atenção à equipa mas tem curiosidade em saber coisas; diz que não têm qualquer ajuda do estado, que os equipamentos e o restante material são eles que o compram. O piso do campo, o famoso "ringue de patinagem" está num estado lastimável e a chuva que caiu e a areia fazem os jogadores escorregarem. São bons jogadores, o jogo é bem corrido e não há coxos. Antes de me despedir trocamos contactos facebookianos e prometemos continuar a falar e quem sabe, poder ajudá-los. Quando cheguei à pousada decidi que uma das bolas que tinha levado era para ele e assim o disse, combinamos encontrar-nos no dia seguinte no mesmo local.
  Às 14 horas em ponto lá estava o Awoul e um amigo. Ficou muito satisfeito com a bola, agradeceu delicadamente. O amigo aproveitou a deixa e veio contar que anda a formar uma banda de musica e que precisa de financiamento para o produtor. Perguntei ao Awoul se era verdade, este riu e disse que nada tem a ver com o assunto mas depois e respondidas mais algumas perguntas disse que posso confiar no amigo que é seu jogador na equipa e que é "rapaz bom". Dei-lhe algum dinheiro, mais um agradecimento delicado, de quem está verdadeiramente grato.
   No regresso à cidade conheci a Dona Florência. Estava a pedir boleia na estrada e eu parei. Entrou, sentou-se, cumprimentou-me, agradeceu e começou a falar. Desde que entrou até que saiu, uns 5 km entre a vila da Trindade e Água Porca nunca se calou. Fiquei a saber que foi ver um dos filhos mas ele não estava, esperou, esperou até que se fartou e iria a pé se não tivesse arranjado boleia. Fiquei a saber que teve 9 filhos, 5 meninas e 4 rapazes e que 2 delas já morreram. Contou-me a tragédia da morte das duas mas falava tão rápido que mal percebi o que dizia. Sei que foram mortes trágicas, uma por arma de fogo, a outra envenenada. As circunstâncias das mortes perderam-se no meio da sua algaraviada. Já perto de casa perguntou-me qual o meu credo. Já percebi pela quantidade de igrejas que pululam pelas vilas e aldeias que este é assunto sério. Evangelistas, testemunhas de Jeová, adventistas, igreja universal, católicos. À pergunta da Dona Florência lancei um contra-ataque porque temi responder mal. Perguntei-lhe qual era o dela. Respondeu que era católica. Suspirei de alívio. Eu disse que também o era. Ali mesmo, agarra-me na cabeça e pespega-me dois beijos. Tive de travar não fosse ter um acidente, ia devagar, no entanto. "Sou católica, nasci católica e hei-de morrer católica e os meus filhos são católicos e batizados". Vê-se que despreza as outras igrejas. Ainda me disse cheia de orgulho que tem 48 netos e 4 bisnetos. "Olha para mim, estou boa, não estou?!" E ri-se com vontade. Chegamos finalmente à sua casa e dou-lhe um saquinho de rebuçados para os netos. O material escolar já o tinha despachado mais cedo. Voltou a agarrar-me na cabeça, mais dois beijos sonantes e agradeceu-me por todos os santos e alminhas. 
Entre estes dois momentos houve um passeio até quase São João dos Angolares, que a noite me fez retroceder, numa paisagem de cortar a respiração; a deambulação pela zona mais bonita da cidade, a zona do forte de S. Sebastião e as grandes avenidas onde tudo lembra o nosso passado colonial. Quem viveu em áfrica antes do 25 de abril sabe do que falo; a missa de Natal na airosa Sé Catedral da cidade onde o padre estava inspirado e o coro juvenil cantava verdadeiras graças ao Senhor e não havia as fúnebres e por vezes desafinadas vozes de velhotas como as da igreja da Sé de Angra; a ida ao Jardim Botânico, uma selva majestosa por um caminho extenso de mato. Estava fechado, terei de lá regressar noutro dia; um banho na baía mais afastada da cidade onde o mar continua manso e as ondas vêm rebentar devagarinho na areia acastanhada. 

Quis comer alguma coisa de jeito. Dia de Natal à tarde. Tudo fechado! Salvou-me um boteco à frente do Hospital Central de S. Tomé onde comprei uma garrafa de água e vim para a albergaria onde jantei um prodigo jantar de torradas com manteiga e uma sagres bem fresquinha. Como sobremesa, uma fruta desconhecida mas saborosa, maracujás e 8 maminhas de preta.
Hoje só há esta foto!
Estes três miúdos iam pela marginal fora até ao bairro do hospital onde moram. Foram apanhados por mim, pediam 5 dobras, disse-lhes que tinha cadernos e rebuçados, ficaram todos contentes. Mais um Ronaldo, o da esquerda, os outros dois já me esqueci do nome, são complicados. Observem o olhar meiguinho do do meio. 
p.s - hoje já me chamaram de "garota" e de "bonita". Os homens de São Tomé são uns simpáticos atrevidos! 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Receitas da Ilha Terceira

Lojas giras - retrosaria