O bicho-papão

   Não tenho especial predilecção por idas ao dentista! Não é com jubilo que lá vou no entanto o sentimento não é de medo, é simples resignação! O meu quinhão de saudável carga genética no que à dentuça diz respeito não foi generoso comigo pelo que frequento dentistas desde miúda! Hoje, de boca aberta durante uma hora, dócil que nem um cordeiro, tive tempo para rever todas as minhas experiências nesta matéria e reflectindo melhor, concluo que, após tantas provações, eu e a bacana da minha actual dentista somos quase amigas e respeitamo-nos mutuamente! 
   Havia um ser, nos idos anos oitenta, aqui na Terceira, que me infernizava a vida, um médico de tal forma demoníaco que me impedia de dormir na véspera de o visitar. Era um abrutalhado que toda a gente, provavelmente os que não tinham nunca provado a sua delicadeza em acção, dizia que o homem era muito bom médico, sim, tinha um feitio um pouco especial mas ninguém poderia negar a sua competência. A mim parecia-me o diabo em forma de gente e ele, como todos os seres primários tinha um instinto infalível e tenho a convicta certeza que sentia prazer em me magoar. Nesses tempos, esperava-se que quem atravessasse o umbral do covil tivesse que sofrer um pouco, era uma consequência normal e não havia como fugir; tinhamos que ser valentes e permitir sem pio que nos fizessem as maiores judiarias. Esse ser, não vou dizer o nome, não é preciso, toda a gente aqui da Terceira sabe de quem eu falo, faz parte do meu imaginário de terror; quais bichos papões, homem do saco ou Michael Myers, o meu Freddy Kruger da vida real era o tal: o de bata branca e cara arreganhada.  O gajo  era um notável da ilha, numa época em que havia poucos médicos dentistas; aqui na ilha basta ser médico para se ser notável, pode ser uma bosta como profissional mas é sr Doutor, pois então! Esta questão da bosta com pernas armado em médico é outro assunto que gostaria de desenvolver um dia que calhe e em que me sinta meia atravessada. Quanto a este não sei dizer se era ou não uma bosta como profissional, como ser humano deixava muito a desejar!  A minha mãe, naquelas suas ideias de poupança resolveu que era no hospital que me havia de tratar. Só de entrar naquela camara de tortura, me saltavam as lágrimas dos olhos, o que começava logo por o irritar. Eram autenticas batalhas, comigo chorosa e ele cada vez mais irado. Certo dia, já não sei porque motivo, deixei de ir ao hospital e passei a visitá-lo no consultório que tinha em Angra; passei a ter um tratamento especial, lembro-me que quase que fiz as pazes com o diabo tal era a diferença na forma como me tratava. Na altura não percebi o motivo mas é certo que assim foi. Este homem, que me "tratou" dos dentes intercalava com outro demónio, quando estava no continente. Soube alguns anos mais tarde que não chegava a ser dentista, era um técnico dentário, com a frieza e a ruindade de um carniçeiro, um ser que recordo, seco, magro e alto e a quem não lembro um sorriso ou uma tentativa de me sossegar. Anestesias na altura eram um luxo e os dentes que tratava eram assim, a doer mesmo, a esticar-me na cadeira, e com os dedos dos pés encarquilhados dentro dos sapatos. Eram lutas de gritos, choros e criaturas iradas. Por vezes, quando recordo estes dois seres, as suas imagens confundem-se, eram igualmente brutos, indelicados, sem paciência para o sofrimento humano, numa posição de controlo e poder e sobretudo indiferença.

   Após estes anos todos, tanta coisa mudou na forma como o médico dentista lida com o paciente! Para melhor, tão para melhor que por vezes passa a ser melhor em demasia. Agora, para tratar um dente, qualquer que seja o tratamento, anestesia é obrigatória. Mais, anestesiam a gengiva antes de soltar a pica. Quando acabo o tratamento tenho a cara à banda, se quero beber algo no entretanto, babo-me toda, faço figuras tristes, arrisco-me a dar dentadas na gengiva. Não sei o motivo mas sempre que isso me acontece lembro-me de uma cena memoravel do Hannibal Lecter onde o homem, numa ocasião de grande requinte, faz com que um dos seus arqui-inimigos coma a sua própria bochecha; os cinefilos que me lerem sabem a que cena me refiro.

  Em última análise penso que ganhei maior resistência à dor à conta daqueles dois. Resistência física e resistência de alma. Não tenho duvidas quanto a isso. Não lhes devo, contudo, quaisquer tipos de agradecimentos, dispensava que se tivessem cruzado no meu caminho.

  Tivesse eu sabido na altura:

   No momento em que o dentista se inclinou sobre a paciente, para começar a brocar um dente, exclamou, surpreendido: "Desculpe, mas está a agarrar os meus testículos!
Eu sei, respondeu ela suavemente. Vamos ter muito cuidado para não nos magoarmos um ao outro, Ok?"

 

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