O mártir

   De há uns tempos para cá tenho-me detido na tentativa de compreensão de um tipo de gente que se arroga de moralmente superior, gente de irrepreensível comportamento, católicos ferrenhos de moralidade inatacável e por consequência doutorados na critica contundente dos outros, os pecadores por pensamentos, actos e omissões.  Aqueles que cristalizam as suas convicções conservadoras e bafientas com a prática regular dos deveres religiosos e aí param na compreensão dos pecados dos outros, que não querem compreender porque é pecado.
   Os outros, os que se arrastam pela lama em que se tornou a sua vida, os outros  que tão dignos de dó e para quem se olha, condescendente, do alto do pedestal das boas práticas cristãs. Os outros que cometem indignidades e vivem uma vida irresponsável disfarçada de felicidade,  pejada de acções inconsequentes e das quais deverão envergonhar-se, eternamente. Umas vergastadas nas costas, umas vestes húmidas cobertas de sal, o sofrimento físico para remissão dos excessos da carne.
   Se a estes paladinos da moral cristã se juntar a convicção martirizada que se vem a este mundo para sofrer e que no sofrimento se vislumbra a luz, temos assegurado um mártir, um ser que não é deste mundo, que no sofrimento se conforta,  alimentando-se com a incompreensão dos outros.
   Usam cilícios morais e penitenciam-se constantemente. Contristados com impuros pensamentos, que os têm, procuram a contrição em todos os aspectos da sua vida: a eles reclamam todos os trabalhos, todas as responsabilidades, todas as agruras e aborrecimentos da vida, certos que assim sendo se aproximam da salvação eterna. Desprezam os que assim não pensam, todos os que agarrados à vida, o fazem pensando como esta é bela e merecedora de gozo. E que agem em conformidade, vivem, riem e fazem amor, e bebem a vida  e gozam de si próprios.
   São parcos nessas manifestações terrenas, o riso é doseado e os prazeres terrenos na medida certa em que não se excedem. O excesso de viver e da louca transigência dos pecadilhos da vida, são interditados.   Levam-se demasiado a sério,  são incapazes do riso de si próprios, de se ridicularizarem e com isso de saírem incólumes, não beliscados na sua imaculada moral. 
   Já provaram o pecado, sentiram o poder da tentação, deitaram-se no leito libidinoso de que se reveste, sentiram o ardor húmido e pulsante, momentaneamente perderam-se nele mas, revestidos de mais e mais força, de luta valorosa e vitoriosa, não se permitiram permanecer. 
   São aborrecidos e chatos não porque queiram mas  porque alguém tem que o ser, a consciência que falta aos irresponsáveis desta vida; caminham fintando os pés porque vergados ante o mundo que carregam. São a nossa consciência sem que lhes tenhamos encomendado um sermão. 

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