Desvario de amor

A conjugação entre uma lua quase cheia e uma cadela no cio resultou na miséria física e psicológica de um cão cá de casa, o único que ainda os tem no sitio e por via dessa circunstância está a penar horrores, as we speak. São 2:48 da matina e nem ele nem eu pregamos olho, a cadela essa, dorme o sono dos justos, absolutamente desconhecedora do rebuliço causado. O cão, no pátio de trás, já foi mudado para o pátio da frente e já voltou para o pátio de trás outra vez que apesar de tudo é o local mais afastado da vizinhança; já ganiu, uivou, arranhou a porta e levou com uns esguichos de água a ver se acalma; entretanto, eu já fui à porta acima de vinte vezes e encenamos o jogo da apanhada, eu a correr atrás dele e ele e esconder-se de mim para regressar mal eu fecho a porta; já lhe roguei pragas e  já o ameacei com a vassoura, nada o demoveu; está positivamente fora de si, transtornado, alterado, endemoninhado e completamente incapaz de raciocinar, isto se se revelar que os cães raciocinam coisa que pela amostra dada cada vez me afasta mais desta possibilidade;  dormir está num horizonte longínquo e receosa que a vizinhança me venha bater à porta,  tão cheios de razão; são agora 2:57 e há 15 minutos que tomei um diazepan a ver se me esvai a camada de nervos com que me cubro, cada latido e ganido é um  estrondo aos meus ouvidos; levanto-me pela milionésima vez e percorro o corredor a lançar impropérios ditos a meia voz;  aproveito e pesquiso na net quais as consequências de um diazepan a um cão bem constituído, e vendo que os riscos são mínimos, aproveito o embalo e enfio-lhe outro comprimido pela goela abaixo; neste momento averiguo com a maior paciência que me é permitida ter às 3 da manhã, qual a frequência de uivos e latidos a fim de determinar se a droga está a fazer efeito. Pois ele mantém-se firme e convicto na sua lengalenga de protestos e declarações de amor arrebatadas e extemporâneas. Afinfo-lhe mais uma dose certa que é desta que ele se estica para um canto e namora a sonhar. Estou furiosa com a inconstância de humor dos meus bichos; este em especial  que entra em guerras fratricidas com a cadela que por ora adora, quanto se trata de comida: é sempre uma luta assanhada com roubos reciprocos de gamelas e pedaços de pêlo a voar pelo ar, no entanto, se vislumbra a hipótese de um interlúdio amoroso é só poesia e protestos de amor; às 3:05 ladra com a mesma intensidade de há vinte minutos atrás, nem um bocejo ou um vacilamento...extraordinário... e este desvario dura desde as 22 horas altura em que lhe cheirou...tão simples assim, cheirou uma cadela com o cio e vai daí o mundo tal como o conhecia até então mudou;
Já não penso com clareza há coisa de 30 minutos; ao cão, a esse ser que estou a ver de esguelha, o comprimido não fez nada, esgravata a porta com a mesma pujança e sinto-o capaz de uma maratona de sexo ou uma síncope nervosa, reconsideraria não houvesse consequências graves posteriores; às 3:30 já o cão ladra rouco, intercala com uivos de amor, arqueja de cansaço, exausto mas investe na porta mais uma e outra vez, o único obstáculo que o separa da sua amada, e isso para ele é insuportável.  Quase que sentiria pena dele não sentisse ainda mais pena de mim própria: é que amanhã não posso mandá-lo no meu lugar para dar aulas; fica ele a dormir o que não dormiu nesta noite em que deu cabo dela. 
   Menosprezei o poder do amor (ou de algo mais carnal), este meu cão é um romântico descarado que o descobriu de uma forma brusca e avassaladora e que à conta disso está a dar-me cabo da porta da cozinha e de mim. O diazepan é contudo relaxante e se há coisa de uma hora apetecia-me estrafegá-lo, agora vejo a experiência duma forma mais pacifica; aguardo que se acalme, o que é uma noite perdida se um ser descobriu o amor; no entanto, amar é sofrer e isso ele aprendeu; outro ensinamento, nem sempre se consegue o que se deseja e viver não é fácil; finalmente, dar-me cabo da noite traz consequências, quais não sei, penso nelas mais tarde.

  

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