Ingrata!

   Cá em casa, luzes de tecto que se fundam não voltam a ver a luz. Este é um facto, uma questão menor mas que me tira a preocupação de mais uma coisa, que sendo pouco importante, na minha cabeça me merecerá os cuidados que se reservam ao que não interessa mesmo nada.Outro dia foi a do pátio, esteve um ano a dar luz desde que para cá vim e não houve um dia que olhando para ela não pensasse, estás aqui estás a fundir, com a gravidade dispensada aos assuntos que surgidos são instantaneamente esquecidos; é verdade que essa luz lá de fora dava-me um jeitão, principalmente para ver as poias largadas sem o mínimo de recato ou discrição pelos meus três cães, mas não  o suficiente que me faça empoleirar-me num escadote para a ir trocar. A da casa de banho já definhou há mais de seis meses, passou-se a alumiar a casa de banho à luz da vela, o que não deixa de ser interessante que uma forma de alumiar tão potencialmente romântica sirva para alumiar uma divisão da casa dispensada a todas as coisas pouco românticas da nossa existência. Ainda experimentei um dia enchê-la de velinhas, um copo de pé alto com um vinho branco estupidamente gelado, banho de imersão, bolhinhas de espuma, música suave, tudo coisa e tal para variar mas a minha banheira é daquelas antigas com pés e tão estreitinha a afunilar no fundo que fiquei encalhada a 3/4 e passaram-me logo as mariquices.  Para o resto é mesmo bom que não se veja bem porque, na verdade, não há nada importante que se faça na cuja que requeira boa acuidade visual. As luzes do tecto são um bom exemplo do que numa casa, o que deixa de funcionar, não merece necessariamente que se vá a correr arranjar; é uma forma matreira mas eficaz de contornar a perpétua tentativa de uma casa que nos prega partidas e que parece estar contra nós; aquela que nos acolhe parece que tem vida, esta onde vivo vive mais do que a conta, bem que poderia andar mais sossegada:  é que se não é a luz é a porta que range e o puxador que se partiu, o esquentador que deita água. Em relação a este estupor, o esquentador que pinga quando aumento a quantidade de água que programo para aquecer, uma marmita colocada logo por baixo resolve-me o problema. Acabada de o usar, fecha-se a torneira do esquentador e pronto, a água só pingará da próxima vez que for usada; método eficiente se a memória não falha e se se fecha a torneira depois de cada utilização, caso contrário, já se sabe; e vai daí para evitar ter que me maçar muito, nem o ligo da próxima vez, banhos de verão com água tépida sabe-se serem de carácter revigorante. O fogão da casa que não  me pertence, pertence à casa, não fecha completamente a porta do forno pelo que arranjei um sistema de fecho alternativo, não totalmente eficiente mas com algum engenho, facto de que me orgulho especialmente. Não resolvido o problema, mas contornado e de forma esperta! Uma das portas do móvel da cozinha está solidária com a porta do fogão, não fecha por um motivo muito prosaico, acho que precisa de uma peça daquelas que se compram nas lojas de ferragem, uma ninharia de nada que se resolve em três tempos, coisa que me irrita, ir à loja de ferragens para comprar uma coisinha, vem-se de lá com dez coisinhas porque entretanto o senhor, muito simpático pergunta, não precisa disto? e daquilo? tem a certeza que quando quiser trocar tem para o fazer? Engana-me sempre, que eu gosto e o que trago vai para a despensa e regra geral fica lá. Não é que não consiga arranjar estas coisinhas, mas nem sempre, quase nunca me apetece bricolagear. Entretanto a porta do móvel da cozinha fica aberta e não raras vezes serve de cama a uma das gatas pelo que me parece uma troca justa, o desalinho de uma montra de cozinha em favor do conforto de um animal amigo. A mim parece-me bem e não me causa mal- estar. 

   As casas velhas têm disto, são velhacas, tratam-nos mal, a mim que gosto tanto delas, que consigo ver graça mesmo no desconforto de uma corrente de ar em janelas mal vedadas ou nas tábuas do chão de juntas desalinhadas onde me entram lascas nos pés descalços ou na pedra que vai mudando de cor para um tom esverdeado ou nas teias de aranha e ajuntamentos de centopeias, formigas e outra fauna que tal. Que lhes acho um consolo enorme todo o ranger, gemer, estalar da madeira. Mas é assim que também gosto mais de as ver, desalinhadas, desconcertadas, desmazeladas, à minha imagem.

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