A vigiar...

   A distância para percorrer uma largura da sala onde me encontro a vigiar um exame são 11 passos dos meus, ligeiramente menos que um metro por cada passo, a um tempo inferior a 1 segundo por passo. Sei o tempo porque tenho o relógio da sala a martelar-me a cabeça, naquela cadência exasperante, audível o suficiente na sala silenciada, entrecortada pelo virar de páginas ou pelas fungadelas ocasionais mas invariavelmente presentes dos alérgicos de serviço. Os 11 passos que vou teimosamente vencendo prolongam-se por mais de uma hora e meia, espremidas que são todas as derivações desta rotina. Em contas ainda que grosseiras, conto que dê 66 passos por minuto, 3.960 passos por hora, 5940 em hora e meia, alcançando cada parede com o mesmo pé, rodando sempre da esquerda para a direita e usando sempre o pé direito como pé eixo. Esta rotina aproxima-me misericordiosamente de um estado catatónico que alivia do aborrecimento. O meu cérebro cumpre apenas os serviços minimos, só uma parte dele se mantém alerta para entrar prontamente em acção: mais uma folha de exame, uma nova caneta que a outra não escreve, são recebidos com a mesma alegria que sente o preso ao lhe ser anunciado que tem visitas. Introduzo uma novidade no meu movimento obsessivo, resolvo  alterar o sentido da minha inversão de marcha, da direita para a esquerda, portanto. Este procedimento exige de mim um esforço adicional, religar as sinapses nervosas não é automático, o estado de aborrecimento alcançado numa vigilância de exame é equivalente a se ser obrigado, numa sala fechada, a ouvir ler as actas todas da direcção de turma mais chata, pelo director de turma mais chato de sempre ( hipoteticamente falando). Essa alteração à rotina queima-me mais uns 10 minutos ao suplicio total. Todos os riscos nas paredes, móveis e mesas merecem-me a observação em pormenor que se dedica a qualquer obra de arte; a frase " O  Chico da Agualva é um gótico" ou " Amo-te Zequinha" é recebido pelos meus sentidos como dádiva celestial; os desenhos dos nós da madeira no armário do fundo da sala são analisados com interesse a roçar o  doentio; nas idas à janela aspira-se o aroma a pombo, residente não oficial dos parapeitos das janelas da escola ( há mesmo quem diga que é a única verdadeira utilidade das persianas cor de vinho), como que a confirmar que ainda se respira e não se perderam as faculdades básicas; inspeccionam--se as unhas a ver se se consegue roer mais um pouco sem fazer sangue; testemunham-se ódios de estimação inscritos nos placards de corticite como aquele que diz " fulano x, é porco, gay, paneleiro e palhaço". 

   E os alunos lá continuam, serenos na sua senda, trabalhadores e persistentes, de canetas em punho, embrenhados nas suas cogitações, e absolutamente desconhecedores do sofrimento de quem os vigia.

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