A minha mãe

  
    Um mês passou.
   A minha mãe morreu num dia ameno de junho, o dia 19, nesta cidade de Angra. Era uma ténue sombra de si própria, um regresso progressivo e inexorável à sua primeira infância. Fisicamente definhou, tornou-se mais pequenina, perdeu a capacidade de falar, de se alimentar sozinha, de se alimentar depois. Eu era a senhora má ou a senhora boa conforme a sua disposição. Na minha condição de filha assumi a figura de sua derradeira mãe.
   Preciso da minha mãe! Quero-a a reconfortar-me, a mimar-me, a limpar-me esta ferida, quero a minha mãe a passar-me a mão pelo cabelo e a dizer-me que está tudo bem! Quero que a minha mãe seja minha mãe outra vez!
   São nove horas da noite, uma necessidade enorme de escrever sobre ela; quero que o tempo pare e que retroceda! Que retroceda a momentos em que era ela, a minha mãe, a fazer de mãe, que é para isso que as elas têm de servir, para nos socorrerem nas nossas aflições, abraçarem-nos quando acordamos com pesadelos, fazerem-nos um chá quando temos febre! Quero essa mãe! E eu quero ser novamente a sua filha, ser conduzida, ser ralhada quando me porto mal, ser mandada fazer, ser amada como só as mães sabem amar! Não quero ser a filha a tentar fazer de mãe; os papeis estão invertidos, sei ser mãe dos meus filhos, sou sofrível no meu papel de mãe da minha mãe! 
   Quero a mãe chata, opinativa, combativa e dura, por vezes! Quero a mãe presente e senhora do seu nariz! Trabalhadora, perseverante, corajosa! Aquela mãe que conduziu com mãos de ferro toda a economia doméstica, que sempre se orgulhou de nunca ter ficado a dever nada a ninguém, que sempre deu a quem precisou e que nunca deixou de criticar quem merecia reparo.
 A curiosa,  entusiasmada pela vida, pelo conhecimento, pelos livros,  que escrevinhava notas em pedaços de papel rasgado, pensamentos, observações da vida, de si e de quem amava, que guardava nos livros e que não voltava a encontrar. Que amava o seu jardim e as suas flores, que cozinhava com a simplicidade inspirada da verdadeira alentejana. Que carregava vitalidade e que punha em todas as pequenas coisas que fazia, o melhor de si. Que muito zelou pela familia, a grande e a pequena, protegendo-as,  observando-as, mantendo-se atenta. Que muito amou, que muito foi amada. 

   Quero a minha mãe para poder ser o que, por vezes, deixei de ser: a filha que ela queria que fosse; menos rebelde, menos arisca, menos explosiva, mais meiga! Quero dar-lhe todos os beijos e abraços que tantas vezes deixei de dar, quero pedir-lhe perdão por todas as ofensas sobre ela tantas vezes cometidas! Quero retroceder no tempo e ser a filha que ela sonhou para si, a filha que sempre esteve junto de si, que a apoiou sempre que precisou. Quero retroceder no tempo e dizer-lhe, sempre e mais vezes, " Mãe, gosto tanto de si !" 
   Não quero a mãe alquebrada, velha e senil dos últimos momentos. Não quero a mãe dependente, mansa, dócil, frágil, doente! Quero o furacão de vitalidade, aquela que nunca ficava doente. É essa mãe que eu quero. E não podendo, quero só mas só recordar essa mãe!
   
   Ontem sonhei que ela estava viva e a alegria foi enorme, o alivio do sonho mau que terminou, "Mãe, escreva, escreva mais no seu livro, conte-me mais histórias da sua vida, encha-me de memórias de si!" 

   O que resta? Memórias, o que para mim ainda é pouco, muito pouco! 

  
Nascida a 24 de Março de 1925, na aldeia de Sta Luzia, concelho de Ourique, distrito de Beja; falecida a 19 de Junho de 2012 no lugar da Ribeirinha, concelho e distrito de Angra do Heroísmo. 87 anos de uma vida cheia, 3 filhos, 5 netos.

   
   
   

Comentários

  1. Será que o que tu pretendes não será aquilo que os teus filhos vêm quando olham para ti?

    Por mais duro que seja a sua partida lembra-te sempre que foste grande pelo que fizeste por ela: estiveste sempre com ela. Até ao fim.

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  2. Bárbara, nunca esquecerei a bondade da tua mãe. Há pessoas que conhecemos e esquecemos, outras relembramos e ainda há as que nos marcam. A Dona Ana foi, sem dúvida,uma pessoa que me marcou, que me ajudou muito numa altura difícil da minha vida. Foi um previlégio a ter conhecido e convivido com ela. Quando parte alguém importante, fica a saudade...dói, mesmo muito. Ficamos nós, que orgulhosamente perpetuamos a memória dos nossos pais. Tu tens a vitalidade, altivez e bondade dela e sei que ela tinha muito, mas mesmo muito orgulho nas suas filhas!

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  3. Muito obrigada aos dois pelas vossas mensagens! A minha mãe era realmente uma grande mulher, com todas as suas virtudes e os seus defeitos. Mulher de fibra e é essa mulher que, passados estes momentos de tristeza, recordarei sempre. Um grande beijinho

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  4. Onde quer que esteja, a sua mãe está muito orgulhosa da filha que tem!
    Um beijo grande!

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  5. Não me recordo dela, era prima da minha que também já cá não está mas falva muito no primo Manuel Loução e na família. Também sinto muito a falta da minha que nos deixou em Janeiro de 2017. Um beijo grande para ambas onde quer que estejam. Beijinhos.

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    1. Rui, obrigada pelo teu comentário. Fazem muita falta! Beijinhos

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