O beijo da avó


   A minha mãe mandava-me beijar os avós. Quer dizer, a minha mãe não mandava, sabíamos que tínhamos de dar beijos aos avós. Mas não só aos avós, aos tios, padrinhos, primos e desconhecidos, tios dos primos dos padrinhos e amigos dos tios dos afilhados. Essa era uma tarefa da mãe, não do pai, não me lembro do pai dizer para beijar fulano ou sicrano. Devia ser uma competência de mãe, da minha mãe era. Quando íamos ao alentejo, à aldeia da minha mãe, no percurso a pé para a casa dos meus avós passávamos por uma casa, numa esquina de porta sempre aberta, onde trabalhava um sapateiro, um homem que me parecia muito suspeito porque era aleijado e tinha um rosto estranho, facto a que a minha mãe não era sensível e eu era obrigada a beija-lo, com uma certa repulsa, confesso. Mas beijava e ele sorria muito naquele seu rosto estranho e falava e a minha mãe falava e conversavam sobre a vida e sobre a sua juventude, por vezes. Para mim aqueles momentos eram penosos mas eram os rituais da minha mãe. Sabia que seria sempre assim quando fosse a Santa Luzia. Continuando rua acima haviam mais umas quantas velhas que me beijocavam, alguns beijos eram molhados e um antro de bactérias. Em chegando a casa dos meus avós ia vacinada e mais beijo menos beijo, até podia ser o cão, um enjeitado feio cheio de pulgas, algures no quintal, para onde eu fugia, para ver as galinhas e as mulas. Mais beijos de despedida e tinha eu sido beijocada sem apelo nem agravo. Feita a peregrinação à Santa Luzia continuávamos viagem para a aldeia do meu pai, Garvão, que distava uns 12 km e nos dias que lá ficávamos havia tempo para ser beijada por meia aldeia. Todos velhos ou quase velhos, ou com cara de velhos mas novos. O avô José estava entrevado depois de uma trombose, tinha uma espécie de cinto que lhe ligava o pé esquerdo à mão esquerda, ou o pé direito à mão direita, já não sei bem qual o lado, parecia uma marioneta e arrastava-se pela casa do quarto para a lareira e da lareira para o quarto. Tinha uns olhos azuis claros e aguados de muito chorar. Arrastava a voz a falar e contava histórias que a avó Augusta desdizia muitas vezes ralhando com ternura, e este diálogo entre os dois fazia o meu avô rir e chorar ao mesmo tempo, umas vezes chorava mais do que ria, outras vezes o riso saia baixinho mas com gosto. A avó continuava as histórias que todos ouvíamos sem falar, um tio acrescentava um pormenor, enquanto assávamos bolotas nas cinzas da lareira e eu espevitava o lume fascinada. Desta avó eu recebia os beijos com alegria. Tinha o rosto cortado de rugas e dois dentes, um em cima e outro em baixo, um abraço quente e um cheiro que era só dela. Sinto-o!  Era sempre com pena que regressávamos a casa. Beijava o avô que chorava sempre na despedida, beijava os tios, os primos, as vizinhas e quem mais aparecesse no momento.  Beijava a avó que escondia uma notinha na minha mão para que ninguém visse mas que todos viam porque eu mostrava à mãe. Lembro-me desses beijos da avó; como não tinha dentes, o beijo era sonoro. E eram beijos que a avó não se ficava por apenas um. E eu gostava desses beijos sonoros e descoordenados. 

Hoje, tanto anos depois o que recordo quando regresso e menos do que desejaria, é a porta do sapateiro em Santa Luzia, aonde passo sempre procurando ouvir a alegria na voz da minha mãe no regresso ao amigo, as portas onde, das janelas, as velhas se debruçavam e a casa que já não é dos meus avós. Recordo os avôs, todos eles, os seus abraços e os seus beijos, uns mais contidos do que outros, recordo menos a avó Bárbara que morreu ainda era eu pequenina e era gorda e eu achava que ela era muito gorda mas era a minha avó, recordo mais a avó Augusta que já velha de noventa ainda matava e depenava as galinhas sozinha e nos comprava na padaria da rua os bolinhos que sabia que os netos mais gostavam.  Recordo as tagarelices da minha mãe, dos meus avós, dos tios, dos primos, de todos aqueles que fizeram parte da vida dos meus pais. A confusão maravilhosa da reunião da família grande. Recordo a avó e os seus beijos, muitos e repenicados, recordo os beijos dos outros avós, recordo todos os abraços e beijos e palmadinhas na cara, os mais desajeitados. E tenho saudades de cada um deles!

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