Quando nasci a minha mãe tinha 42 anos. O meu pai também!
Quando tive idade para perceber, percebi que antes de mim e da minha irmã, dois anos mais velha tinha havido outro filho e que esse filho tinha morrido. Desde que me conheço com capacidade para pensar, me dei conta, no meu entendimento de criança, em que tudo parece sobre dimensionado e o mundo é visto com um tamanho e uma importância gigantesca aos nossos olhos, que o meu irmão morto, antes que eu e a minha irmã tivéssemos nascido, era um ser perfeito, que morreu nessa perfeição sem mácula. Tinha nove anos, idade em que não se concebe que ser humano algum morra. Morreu electrocutado! Tinha nove anos e morreu de uma forma inconcebível. Morreu electrocutado num jardim publico de uma grande cidade, Lourenço Marques, de alguns anos a esta parte, Maputo, Moçambique. 
Desde que tomei consciência de que o mundo não era um lugar sempre seguro e sempre bom e sempre pacifico e sempre prazenteiro, foi-me dito pela minha mãe, sempre com sofrimento na voz e num tom que se usa para falar de coisas de que se sentem uma falta dolorosa, que existira esse ser e que a dor sentida por ela, permanecia e sempre a acompanharia até à sua morte. A imagem que guardo dele, não a imagem da fotografia, é a imagem de um ser intocável na sua perfeição: excelente menino, obediente, alegre, muito amigo de sua mãe e um excelente aluno. Era assim e nestes termos que éramos convidadas a reverencia-lo, ao mano. Não era o nosso irmão, era o nosso mano! O nosso mano vivia nas fotografias da sala e do quarto dos meus pais, normalmente vestido com a farda da mocidade portuguesa, a que não pertencia mas que, segundo a minha mãe, eram obrigados a ter e a vestir. Não percebo agora, vestiam-na nos dias festivos? Reservavam-nas para as fotografias? Não pertencia ao movimento, dizia a minha mãe mas o certo é que a imagem que guardo dele é com ela vestida, todo prezado, um pequeno soldado pronto para a luta. 
Num canto do seu guarda-fatos a minha mãe guardava, com a dor de toda a saudade acumulada, os livros e os cadernos da escola e todos os desenhos e postais de dias da mãe e do pai, nos quais o pequeno ser, escrevia o quanto os amava, postais que não raras vezes eram acompanhados de uma imagem da Nossa Senhora ou do São José, tão bem ao gosto do catolicismo conservador do Estado Novo. Guardava também alguma roupinha, não muita, o vestidinho do batizado e recordo que, da farda da Mocidade Portuguesa guardava meramente um cinto, em couro e com um S desenhado na fivela. Esse cinto, era o único adereço que me lembro ter sobrevivido aos anos, gostaria agora tanto saber que fim teve, que destino lhe deu a minha mãe, aos calções e a camisa de botões e tudo o resto que compunha a farda. Pequena que era nunca me questionei sobre o significado do S do cinto, para mim poderia ser um S como um C ou um K. Não era uma inicial, era um desenho. 
Sabia de toda a história da ditadura no país, da revolução de 74, regressada a Almada pouco depois da revolução, vinda de Moçambique vivíamos na comoção dos novos tempos, um tempo de esperança e novos começos. Eu sentia o frenesim, a discussão indecifrável de politica dos adultos, cantava " uma gaivota voava, voava", canção que repetia até à exaustão e habituara-me a trautear o hino do Movimento das Forças Armadas. Tinha 7 anos mas recordo imagens, sons, a televisão a preto e branco com as noticias frenéticas, entusiasmadas dos repórteres. Sabia que algo muito solene tinha acontecido e recordo ter decidido, pouco tempo mais tarde que pertencia ao Partido Comunista. Não sei porque tomei essa decisão mas pareceu-me que, por aquela altura, e do que tinha decifrado da linguagem dos adultos, eram eles os bons. Do General Ramalho Eanes recordo um personagem austero e lembro-me que o pensar que aqueles óculos de massa escuros e excessivamente grossos, me causavam algum respeito. Também gostava do camarada Vasco Gonçalves e do  Pinheiro de Azevedo, não porque percebesse nada do que diziam mas porque me pareciam bons.
Alguns anos mais tarde, vinda de uma estadia de 5 anos na Terceira, revoltada e em plena fase rebelde, numa das muitas incursões ao sótão, onde se encontrava sempre tralha interessante que já não sabia existir, volto a descobrir o cinto, guardado com outras objetos do passado. E resolvo logo ali que me apetece usar o cinto que pertencia ao meu irmão, uma homenagem a ele e porque me parecia muito giro. Era a época dos vestidos indianos com as malas de cabedal compradas numa ruela de Almada, malas que escureciam com o tempo. Era o tempo das missangas e dos sapatos mocassins, aquele cinto tinha tudo a ver, de couro curtido, muito hippie, achava eu, o S desenhado continuava indecifrável para mim; e era assim, revolucionaria adolescente tardia, que ia vender tralha à feira da ladra. Até que um dia, alguns anos mais tarde, já depois dos meus gostos estéticos terem mudado que, vendo de novo o cinto e olhando com os olhos de quem já reflete com cabeça de adulto, e não necessariamente melhor, percebi o S e dei conta do pecado cometido. Mas logo ali, sem culpas me absolvi.   

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