Um dia típico de aulas da escola publica dos últimos anos é um dia em que, por mais criativa e susceptível de elaborares cenários que sejas, nada te prepara para a singularidade rotineira de cada tempo de aula. Vais armada da tua maior e quase inesgotável paciência e numa espécie de fatídica inevitabilidade enfrentas cada hora com a perseverança dos bravos ou dos loucos, de acordo com a perspectiva. Surpreendes-te, no final, que ainda te mantenhas sã e capaz de um raciocínio lúcido e critico. Passas uma esponja pelo assunto ainda que não esqueças para que possas, no dia seguinte voltar à batalha de nervos e palavras e acções e saíres inteira no processo. No final de tudo, do mês, do ano, da década, curiosamente, ainda acreditas que ajudaste na mudança de algo, de uma visão, de um desabrochar de alma, de um despertar de mente, de uma luz , de uma escolha para a vida. 

   Caminhas para a última aula do dia, vens cansada e anseias por esticar as pernas, libertar-te das sapatilhas, e fechares os olhos em silêncio. Tu sabes o valor do silencio, quando o tens tão pouco. És avistada pelos pré-delinquentes de serviço à escola, os enjeitados da casa onde vivem, os que a escola recebe como o último reduto antes de passarem a delinquentes de mão cheia. A ti dizem-te que tens que os aturar porque só tu é que o fazes, se não lhes dás a mão, eles rebolam por ali abaixo até a uma qualquer cela de qualquer prisão, ou nas garras da droga e do álcool, atoleimados e ignorantes antes de cumpridos os 30. Tens que aguentar porque a sociedade agradece. Aguentas! 
   Lá em cima simulam que cospem para ti, puxam o cuspo para dentro em esgares e ruídos de besta e retraem-se no último momento num qualquer acto de contrição. Os mais burros cospem-te mesmo mas como o percurso é longo, o cuspo prende-se na árvore mais próxima e fica a escorrer num fio viscoso. Com a calma só possível pelo engrossar da casca em muitos anos de uso, avisas que não entram, confirmas com o funcionário e são recambiados para outras paragens, que na tua não ficam,  Limpam vidros ou o que houver que lhes limpe o sujo de dentro.  Não percebem, estavam a brincar e nesse pressuposto que pela brincadeira tudo se consente, assentam todas as constantes boçalidades das suas vidas.

   Foi ontem, e hoje o dia repete-se e a constância dos comportamentos também. Outros personagens, uma linha comum. Em quatro momentos de um mesmo dia, de uma mesma manhã, quatro histórias de uma prática diária:

    - A turma é para quem têm pêlo no peito, de gancho e truculenta; não te permites distracções nem confraternizações; se queres fazer humor perdes o teu tempo, ironia é língua desconhecida, se elaboras muitos o discurso ofendem-se porque muito provavelmente estás a fazer troça deles; são humoristas,  no entanto, mas num só sentido, o deles. Tentas ensinar e por vezes eles tentam aprender. Se no entanto tentas ensinar de uma forma diferente da forma como eles querem aprender, aparecem-te logo sete ou oito que te dizem como fazer, dizem-te que não, que não é assim que se faz e ofendem-se. São muito de se ofender, têm a sensibilidade à flor da pele como divas num palco enquanto vão lançando caralhadas e foda-se à discrição. Os que querem aprender, que são poucos, olham embaraçados em redor e fazem-se pequenos para que não sobre também para eles. Avanças uma e outra vez na senda de lhes fazer ver, fazer simplesmente ver a pertinência de uma acção, tentas que percebam. Dizes; "Tenta perceber que deves tentar sempre fazer a recepção da bola com as duas mãos! Um deles que pode ser qualquer um: " Eu recebo com as mãos que me apetecer!"
   - Uma hora mais tarde, outra turma, a cuspidora, rapazes de quinze, dezasseis, dezassete anos que não sabem quanto é 2x3 e que um minuto tem sessenta segundos. Porque metade da turma chega sempre tarde e faz disso gala, pergunto porque demoraram tanto nos balneários ao que um responde " estiveram a comer-se uns aos outros". Junto a turma e falo com eles, pergunto se acham adequado, correcto ou respeitoso para alguém, estou calma porque  a explosão se reserva para apenas alguns momentos. Estou calma e questiono, alguns protestam e outros riem e nesse vai e vem de comentários diz o primeiro sobre outro que o interpelou " tu deves ser a mulher lá dentro!". Encerrou a tentativa de diálogo.
   - Uma turma de miúdos pequenos de onze, doze anos  mas de problemas grandes e variados.  Formação de equipas, faço por rodar por eles todos, um deles, um dos que escolhia e que já tinha escolhido os que queria arma o burro, pergunto o que se passa, responde " JÁ não há NADA de jeito para escolher!" Interrupção de aula, esta é formada por um grande conjunto de interrupções com momentos fugazes de aula. Faço ver uma e outra vez, faço por entender porque é inadmissível dizer que não há nada de jeito, não entende porquê. Ele e os outros, os renegados também;
    Noutro momento, a miúda má de serviço, uma espevitada de fogo nas ventas, malcriada e com a língua solta mais do que a conta, porque outro a irritava e um colega o pós no seu lugar, grita bem perto dos meus ouvidos " Chupa, cabrão!" Apercebe-se do que diz mas mesmo assim tenta desculpar-se, culpando o colega. É assim que os miúdos resolvem as suas culpas, desculpando os seus actos por reacção aos actos indesculpáveis dos outros, É a turma dos miúdos que a sabem toda, até da perversidade reservada aos mais velhos, a historia dos pais e das famílias retortas  de contornos  duvidosos, de bebedeiras, abusos e relações promiscuas com gerações de permeio.

  Esses são os miúdos e os jovens das freguesias rurais da banda sudeste da ilha, entre Angra do Heroísmo e a Fonte do Bastardo,  Alguns, mas que começam a ser muitos.

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