O cinto
Quando nasci a minha mãe tinha 42 anos. O meu pai também! Antes de mim e da minha irmã, tinha havido outro filho que morrera. Desde que me conheço com capacidade para pensar, me dei conta, no meu entendimento de criança, em que tudo parece sobre dimensionado e o mundo é visto com uma importância gigantesca, que o meu irmão morto, antes que ambas tivéssemos nascido, era um ser perfeito e que morreu nessa perfeição sem mácula. Tinha nove anos.
Foi em Lourenço Marques. Quando tomei consciência de que o mundo não é um lugar sempre seguro e sempre bom e sempre pacifico e sempre prazenteiro, foi-me dito pela minha mãe, com sofrimento na voz, que a dor sentida por ela, permanecia e sempre a acompanharia até à sua morte. A imagem que guardo dele é a de um ser intocável na sua perfeição: excelente menino, obediente, alegre, muito amigo de sua mãe e um excelente aluno. Era assim e nestes termos que éramos convidadas a reverencia-lo, ao mano. O nosso mano vivia nas fotografias da sala e do quarto dos meus pais e em duas delas vestido com a farda da mocidade portuguesa. Segundo a minha mãe, a farda era obrigatória mas nunca passou disso, nem marchas nem concentrações massivas de jovens de apelo de amor à pátria ou lavagens cerebrais ideológicas precoces. Mas o que recordo dele é a sua imagem de farda vestida, todo prezado, um pequeno soldado preparado para a luta.
Num canto do seu guarda-fatos a minha mãe guardava, com a dor de toda a saudade acumulada, os livros e os cadernos da escola e todos os desenhos e postais de dias da mãe e do pai, nos quais o filho, escrevia o quanto os amava, postais com uma imagem de um santo, tão bem ao gosto do catolicismo conservador do Estado Novo. Guardava também alguma roupa, o vestidinho do baptizado e, da farda da Mocidade Portuguesa apenas o cinto, em couro e com um S de metal desenhado como fivela. Pequena que era nunca me questionei sobre o significado do S do cinto, para mim não era uma inicial, era um desenho.
Por altura de Abril de 74 ainda vivíamos na Beira em Moçambique e regressada a Almada pouco depois da revolução, percebi que algo muito importante tinha acontecido. Sentia a comoção dos novos tempos nas conversas dos meus pais. Sentia o frenesim, a discussão indecifrável de política dos adultos, cantava "uma gaivota voava, voava", canção que repetia até à exaustão e habituara-me a trautear o hino do Movimento das Forças Armadas. Tinha 7 anos mas recordo imagens, sons, fragmentos, a televisão a preto e branco com as notícias frenéticas, entusiasmadas dos repórteres. Sabia que algo muito solene tinha acontecido e recordo ter decidido, pouco tempo mais tarde que pertencia ao Partido Comunista. Provavelmente porque tinha um tio, irmão da minha mãe, um bonacheirão comunista ferrenho que sempre que a visitava lhe oferecia um livro do José Saramago e a mim pastilhas elásticas e nos tentava doutrinar, a cada visita. Do General Ramalho Eanes recordo um personagem austero e lembro-me de sentir que aqueles óculos de massa escuros e grossos, me causavam algum respeito. Também gostava do camarada Vasco Gonçalves e do Pinheiro de Azevedo, não porque percebesse nada do que diziam mas porque me pareciam confiáveis. Os campos de papoilas que encontrava no caminho para a escola eram mais um símbolo do que sentia ser a liberdade. Apanhava umas quantas que prendia no cabelo e sentia-me parte daqueles tempos. Falava-se de liberdade, aquele dia, o 25 de Abril tinha sido o dia em que a liberdade tinha voltado. E eu, que sempre fora livre, na minha existência de criança em África, de pés descalços e vadia, ia tentando perceber em que medida, outros, dela tinham sentido falta. Ia apanhando fragmentos dos discursos políticos, os debates na televisão, naquele tempo de um único canal era uma consumidora ávida e lá em casa ninguém me proibia de ver televisão, via tudo, os programas dos miúdos e os programas dos graúdos. Não havia filtro mas não havia necessidade de haver filtros. Não era grande dilema para a minha mãe saber se a filha tinha maturidade para assistir ao programa do engenheiro Sousa Veloso ou se o Vitorino Nemésio a falar era de entendimento fácil para a filha mais nova. Era um tempo livre, eu era uma criança curiosa e os meus pais, uns pais permissivos amantes do conhecimento.
Quase uma década passada, vinda de uma estadia de 5 anos na ilha Terceira, revoltada e em plena fase rebelde, numa das muitas incursões ao sótão, onde se encontrava sempre lixo interessante que já não sabia existir, volto a descobrir o cinto, guardado com outros objectos do passado. E era tão giro! Vivia-se o início dos anos oitenta, a época dos vestidos indianos com as malas de cabedal compradas numa ruela de Almada, malas que escureciam com o uso constante do tempo. Era o tempo das missangas e dos sapatos mocassins, aquele cinto ficava a matar, de couro curtido, muito hippie, achava eu. O S desenhado continuava indecifrável para mim; e assim eu, revolucionária adolescente, que ouvia os Trovante e Janita Salomé apanhava o cacilheiro na margem sul com o símbolo da ditadura à cintura, para vender tralha à feira da ladra.
Alguns anos mais tarde, já depois dos meus gostos estéticos terem mudado e, vendo de novo o cinto, olhando-o com os olhos de quem já reflecte com cabeça de adulto, percebi subitamente o S e dei conta do pecado cometido. Lembro-me do meu coração se ter sobressaltado. A descoberta foi tão súbita que fiquei alguns instantes sem acção, sentei-me para ordenar o pensamento e reflectir no que fizera.
Findado o choque inicial e depois de ter exortado a Deus uma desculpa pateta, sorri com aquele sorriso enviesado de quem cometeu um mundo de travessuras e nunca foi apanhado. Nunca ninguém me dissera nada, nunca a minha mãe se dera conta? Qual a mácula pessoal por ter, durante tanto tempo, usado um símbolo de repressão de forma tão leviana? Durante uns tempos andei zangada com a minha estupidez mas com os anos fui-me desculpando. A vida é irónica e zomba tantas vezes de nós, suponho que rir dela é a forma mais honesta de desculparmos aquilo em que pecamos, sem disso nos termos darmos conta.
O cinto, nunca mais o vi.
O cinto, nunca mais o vi.
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